A luta social desenvolvida pelos professores está, desde o final de 2022, a marcar o quotidiano das escolas, alunos e comunidades escolares e em boa parte a agenda mediática. São já meses de luta social intensa, sem um fim à vista.
Uma luta de proporções inéditas
Tem chamado a nossa atenção a persistência e a mobilização de uma classe sócio profissional que, desde há largos anos tem sido obrigada a lutar por direitos básicos e pela melhoria da qualidade do serviço prestado pelas escolas.
Ultimamente os professores estão a superar-se e a revelar uma mobilização e empenho sem precedentes, ao realizarem consecutivamente três grandiosas manifestações nacionais com mais de uma centena de milhar de docentes cada uma. As ações de rua não se ficaram por aqui e desdobraram-se em centenas de concentrações locais à porta de escolas e em largas dezenas de vigílias e manifestações distritais, realizadas de Norte a Sul do país nos últimos três meses.
Após a sexta ronda negocial as partes estão ainda longe de chegar a acordo e a luta vai continuar, estandojá marcadas mais greves e manifestações para o final de fevereiro e primeiras semanas de março.
Instabilidade nas escolas e a falta de atratividade da profissão docente
Há muito que sabia que estavam a diminuir o número de matrículas nas escolas superioresde educação, causando uma pronunciada diminuição número de licenciados nesta área.
Entre os jovens alunos, que ao longo do seu percurso escolar, e em especial nos últimos anos do secundário, foram observadores privilegiados do que se tem tornado a vida de um professor, quase ninguém quer essa profissão.
Em consequência disso, nas escolas, o problema da falta de professores foi chegando gradualmente nos últimos anos e fez-se sentir especialmente no passado anoletivo, de forma agravada nas áreas urbanas em crise habitacional.
Tornou-se incomportável para qualquer professor deslocado da sua área de residência, custear uma segunda habitação, especialmente nas regiões onde os preços se encontram mais inflacionados. Os que teimam em seguir a profissão, perdem várias centenas de euros mensalmente pelo aluguer de quartos partilhando casas com desconhecidos, longe das suas famílias.
No início das aulas, em setembro passado, ascendia já a 40 000 o número de alunos que, por falta de professores colocados, não podia receber aulas a todas as disciplinas do seu currículo escolar.
Por outro lado, com o agudizar do processo reivindicativo, nas escolas têm-se sucedido as greves, o que, adicionado à falta de professores colocados, fez aumentar o número de aulas não lecionadas.
As muitas e fortes razões do protesto
Afinal, que se passa com os professores? De onde vem o seu mal estar? O que leva uma classe sócio profissional dedicada e preocupada com a qualidade do seu trabalho a lançar-se num conflito social desta duração e magnitude?
Várias razões concorrem para a situação a que hoje assistimos.
Uma pesada herança
A primeira das quais deve-se à herança jurídica deixada pelos governos de Sócrates e Lurdes Rodrigues, que governos subsequentes mantiveram e aprofundaram. O rasto de disfunções e injustiças iniciado nesse período, perdura até hoje dentro das escolas, podendo dizer-se que boa parte do que assistimos hoje nas ruas são atos de resistência e rejeição de leis e medidas adotadas entre 2008 e 2010 e suas consequências. Ou seja, grande parte do mal-estar que hoje é gritado nas ruas, começou a acumular-se lentamente há mais de uma década.
Precariedade, nomadismo, instabilidade do corpo docente
As regras de recrutamento e pré-carreira que impõem o prolongamento de uma precariedade contratual inadmissível, acentuando o nomadismo da profissão e o consequente afastamento dos docentes das áreas de residência, são um dos óbvios fatores de descontentamento.
Sustentar duas casas com o agravar da crise da habitação e a inflação dos seus custos, tornou-se incomportável especialmente para professores em contrato anual a auferir 1050 euros, numa profissão em que, em média, se atinge a efetividade aos 16 anos de serviço e aos 45 anos de idade. Dezasseis anos de precariedade, longe da área de residência, com o magro salário a esvair-se para más habitações e despesas de deslocação, quem quer esta vida?
A gritante injustiça e desigualdade imposta aos chamados professores contratados, que ganham sempre o mesmo salário independentemente da sua experiência, tempo de serviço e qualificação, são situações que estão a provocar desde há anos a fuga da profissão e a revolta para os que nela permanecem.
Perante o número crescente de alunos sem aulas a primeira resposta do atual governo foi abrir a porta da docência a candidatos sem estágio profissional e com insuficiente ou nula formação pedagógica. O que havemos de pensar sobre um governo que toma estas decisões?
O absurdo do sistema de avaliação e das regras de transição na carreira
Outro fator de grande descontentamento são as regras progressão na carreira para os professores dos quadros, com o chamado bloqueio no 5º e 7º escalões, que consiste imposição de apertadas quotas para a transição no acesso a estes escalões.
Também na atribuição das classificações de “Muito Bom” e “Excelente”, se aplica o mesmo tipo de limitação, fazendo com que professores que tinham obtido essas classificações as vejam depreciadas artificialmente para a classificação de “Bom”, por imposição legal.
Além do referido, assistiu-se nos últimos 15 anos à acumulação de várias outras situações de injustiça, sobrando razões para os professores se queixarem:
Uma das principais razões de queixa é o facto de não estar a ser contabilizado todo o tempo de serviço efetivamente trabalhado, do qual 6 anos, 6 meses e 23 dias não estão a ser contados para efeitos de progressão na carreira, o que se tem traduzido em perdas salariais muitíssimo significativas, todos os meses e ao longo de anos.
Ultrapassagens num país com duas leis
Entre as causas do mal-estar dos profissionais docentes, tem sido o tratamento desigual dado a professoresque prestam serviço no continente e os seus colegas que realizam exatamente o mesmo trabalho nas ilhas, permitindo que estes progridam mais rapidamente na carreira e lhes seja contado todo o tempo de serviço, com claras melhorias na sua situação salarial.
Por outro lado, têm vindo a ser conhecidas e denunciadas várias situações de ultrapassagem na graduação profissional e na progressão na carreira, devidas a erros da conceção de diplomas legais.
E muito mais...
Também as condições de trabalho e de horários, assim como a mobilidade por doença, registam gravíssimas situações de dano profissional e pessoal que tem vindo a ser tornadas públicas pelos sindicatos e que importa corrigir.
O excessivo número de alunos por turma, ao tornar impossível o acompanhamento individualizado e diferenciado de casos, em turmas cada vez mais heterogéneas, é outro facto na origem da frustração profissional e do descontentamento. Não só porque dificulta em muito a concentração e o trabalho organizado das turmas, como promove a dispersão e obriga a um esforço acrescido do professor para motivar diariamente os alunos e promover as aprendizagens.
As sucessivas inspeções do ministério da educação fazem de conta que não vêemnada disto, como também fingem ignorar o inferno burocrático em que atualmente se transformaram muitas escolas e agrupamentos. Não é esse o interesse da tutela que devia preocupar-se com um certo estilo de gestão escolar instalado desde há muito, que retira os profissionais de muitas tarefas pedagógicas fundamentais, encaminhando-os para tarefas redundantes e inúteis, que nada melhoram a qualidade do serviço educativo prestado.
Gestão escolar não democrática
Sem esgotar esta extensa lista de razões de descontentamento, não pode deixar de se referir a legislação referente à gestão escolar aprovada em 2008 e confirmada em 2012 que teve como resultado prático, tornar a gestão unipessoal, centralizando-a na pessoa do diretor, bem como retirar aos membros da comunidade escolar a possibilidade de elegerem democraticamente os seus órgãos de gestão executiva, financeira, administrativa e pedagógica.
Convêm lembrar que os diretores são na maior parte dos casos escolhidos sem concorrência ou alternativa de vários candidatos, por um conselho geral de apenas vinte e um membros. Nesse conselho, quem elege o diretor têm frequentemente condicionantes importantes no seu voto: ou por manterem diariamente relações profissionais numa posição hierarquicamente subalterna (professores e assistentes administrativos) ou por baixa representatividade, em consequência da habitual escassa participação nas eleições para os conselhos gerais.
Facilmente se compreenderá porque muitos diretores se eternizam nos seus cargos, repetindo e prorrogando mandatos atrás de mandatos, chegando ao ponto de ultrapassar as duas décadas de exercício, contribuindo para uma cultura de escola democraticamente deficitária. Muitos diretores já não se lembram do que é dar uma aula, visto a lei os dispensar desse tipo de obrigação. Estes antigos professores tornaram-se há muito numa espécie de aplicadores das diretrizes do ME junto dos atores educativos e da comunidade escolar, esvaziando a tantas vezes evocada palavra “autonomia” de qualquer significado.
Convêm lembrar que os diretores escolhem todos os membros do seu gabinete, predeterminam e selecionam a escolha dos membros elegíveis para os conselhos pedagógicos que (eles próprios dirigem), assim como dirigem o conselho administrativo e financeiro, não sendo raro influenciarem o processo de constituição de listas de professores, funcionários e alunos para as eleições do conselho geral.
Perante este quadro torna-se pertinente a pergunta: Como pode a escola cumprir a sua missão de formar cidadãos cívica e democraticamente interventivos, quando vive diariamente uma cultura não democrática, pautada por órgãos não eleitos e dominada pela visão unipessoal de um diretor que quase tudo põe e dispõe? Uma cultura sem partilha de decisões, sem contraditório ou debate, sem hábitos de participação de alunos, professores, encarregados de educação ou assistentes administrativos e operacionais.
Municipalização sucede a anos de má governação
Em traços gerais, podemos dizer que depois de Lurdes Rodrigues, os ministros/as Isabel Alçada, Nuno Crato e Tiago Brandão Rodrigues contribuíram para o arrastar de todos os problemas anteriormente referidos, promovendo várias medidas que concorreram para a degradação da organização escolar: o processo de municipalização promovido com o acenar estratégico de “mais autonomia”, gestão de proximidade e mais benefícios no edificado escolar concelhio, é um exemplo disso. Apenas neste último aspeto se terão registado alguns ganhos, num conselho de Cascais em que - por incúria do governo central- as escolas têm tido que competir entre si e com outros projetos comunitários para a realização de obras de beneficiação urgentes, através dos “Orçamentos Participativos” lançados pela câmara.
Com o advento da municipalização, a dependência dos diretores escolares em relação aos municípios tem vindo a acentuar-se, nomeadamente para efeitos de realização de obras no edificado e apoio na gestão dos recursos humanos não docentes.
Não é possível determinar até que ponto as cumplicidades partidárias podem influenciar as relações autarquias/diretores, num contexto de pequenas comunidades em que é fácil perceber quais as simpatias e convicções de cada um. A atual conjuntura político-jurídica tenderá a aumentar em muito a influência e a interferência dos municípios nas escolas incluídas nos seus parques escolares concelhios, quer na esfera económica e de gestão, quer na esfera pedagógica, o que, sobretudo neste último caso está longe de ser bem aceite entre os professores.
A influência exercida na área pedagógica por entidades e atores políticos e da administração local que lhe são estranhos é mais um fator a acrescentar aos vários que concorrem para o mal estarque hoje se vive nas escolas.
Por outro lado, a chegada de várias instituições e atores particulares aos concelhos onde a educação foi recentemente municipalizada, trouxe às câmaras propostas de adesão a “projetos educativos” através dos quais são aportadas verbas para os municípios, a partir de fundações, empresas e associações diversas. Desta forma, passa a ser do interesse da autarquia incentivar e promover a adesão das escolas a um sem número atividades e projetos que de uns anos para os outros passaram a interferir com a agenda diária e a programação pedagógica das atividades letivas.
Estas situações tornam-se especialmente problemáticas quando as instituições por detrás dos projetos têm natureza confessional ou são privadas com fins lucrativos, não se coibindo de, nalguns casos, publicitarem marcas, serviços e produtos junto da população escolar, a pretexto da dinamização de projetos tantas vezes de questionável interesse pedagógico. Mas o que importa isso, se a dinamização desses projetos permite a alguns professores agradarem a diretores, alguns diretores agradarem a autarcas e alguns autarcas agradarem a empresas e fundações que em contrapartida da implementação dos seus projetos disponibilizam verbas para autarquias e escolas? Chega a parecer que todos saem a ganhar… e os alunos? E a qualidade das suas aprendizagens?
As razões do mal-estar vivido por escolas e docentes estão longe de se esgotar nestes já longos tópicos.
Como ultrapassar a atual situação?
O desbloquear da atual situação impõe em primeiro lugar que o partido do governo, autor da generalidade das normas que hoje regem o sistema educativo, seja capaz de fazer uma avaliação crítica do estado da educação e em particular da gestão de recursos humanos da educação, que tem vindo a realizar.
Ou seja, seria necessária um rigor, uma humildade e uma coragem política que a atual direção do partido socialista sob liderança de Costa, também ele ex-ministro do Governo de Sócrates / Lurdes Rodrigues, nunca deu sinais de revelar.
24/02/2023
Carlos Silva, professor do Ensino Básico, dirigente sindical e ativista do Bloco de Esquerda.