Share |

Um Estatuto da Pessoa Idosa ou um Estatuto do setor social e privado que gerem os apoios aos idosos?

 

 

                                                     

 

No dia 2 de outubro, a seguir ao dia Internacional do Idoso, o governo PSD/CDS anunciou a aprovação em conselho de ministros de “um conjunto de diplomas com vista à valorização da pessoa idosa, procurando assegurar um envelhecimento ativo, digno e seguro“, entre estes está uma Proposta de Lei 28/XVI/1 que cria o Estatuto da Pessoa Idosa. Havia um antecedente com a aprovação, em 2023, da Carta dos Direitos da Cidadania Senior, de iniciativa do partido LIVRE que reagendada, em outubro de 2024, não foi aprovada na Assembleia da República.

Pode-se discutir a necessidade de existir um estatuto específico quando os direitos e deveres da pessoa idosa são direitos humanos e de cidadania reconhecidos na Constituição Portuguesa e demais legislação nacional e considerar que o importante são as políticas públicas efetivas que permitem o exercício desses direitos.

Por outro lado, a existência de um Estatuto da Pessoa Idosa pode ser um instrumento para reconhecer a velhice como um direito fundamental, concretizar os direitos dos mais velhos, reconhecer o cuidado como direito e responsabilidade coletiva, obrigar o poder executivo a elaborar políticas públicas para a realização destes direitos e para promover uma atitude da sociedade em relação à velhice que supere a sua desvalorização, invisibilidade e os preconceitos.

Se compararmos com o Estatuto do Idoso do Brasil, aprovado em 2003, embora continue a haver problemas sociais é reconhecido como um instrumento de transformação social, vemos como o caso português é limitado e feito à medida para o reconhecimento do papel do “setor social” que gere os apoios aos idosos e do setor privado “que presta serviço público” segundo a cartilha neoliberal do PSD/CDS.

Estatuto do Idoso do Brasil estabelece direitos sociais concretos, prioridade em várias situações, obrigações do poder público, fiscalização e controlo da aplicação do Estatuto a cargo dos Conselhos Nacional, Estadual e municipais do idoso e do Ministério Público, havendo penas e multas para as infrações, penalidades para programas e instituições que não cumprem com os requisitos, entre outros aspetos. Abrange o direito à saúde assegurado pelo Sistema Único de Saúde - SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário (art.15.); acesso à cultura e lazer, com descontos de pelo menos de 50% nos ingressos para eventos artísticos, culturais, esportivos e de lazer (art. 23.) e com o apoio à criação de universidade aberta para as pessoas idosas pelo poder público (art. 25.); o direito à habitação com propostas nos programas habitacionais, públicos ou subsidiados com recursos públicos, como a reserva de 3% das unidades residenciais para atendimento aos idosos, a implantação de equipamentos urbanos comunitários voltados ao idoso e a eliminação de barreiras arquitetónicas e urbanísticas, para garantia de acessibilidade ao idoso (art. 38.); direito à mobilidade, com a gratuitidade dos transportes coletivos públicos urbanos e semi-urbanos e reservas de 10% dos assentos (art.39.); acesso à justiça, com prioridade na tramitação dos processos, procedimentos e execução dos atos e diligências judiciais e proteção judicial (Título V).

Demasiadas normas e de difícil execução? Talvez. Mas amplia os direitos da pessoa idosa e fiscaliza o seu cumprimento.

O projeto de Lei do Estatuto do Idoso do governo PSD/CDS garante como direitos da pessoa idosa o direito a uma vida digna, à integridade e segurança, à cidadania, à convivência familiar e comunitária, à autonomia e à liberdade. Pretende responder “às necessidades crescentes de cuidados de saúde e assistência social” devido ao envelhecimento demográfico com políticas públicas que são indicadas do artigo 8º ao 17º, assentes no apoio domiciliário de prestação de cuidados médicos e de apoio à atividade quotidiana e de teleassistência para permitir o máximo tempo possível a permanência da pessoa idosa na sua residência e contexto familiar, retardando ou evitando a sua institucionalização. Se estes são hoje princípios consensuais, nota-se a ausência de uma referência explícita ao reforço do Serviço Nacional de Saúde e de uma rede pública de serviços de apoio ao domicílio em toda esta arquitetura.

Embora afirme que “O Estado assegura o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde para a pessoa idosa, com especial atenção às doenças que afetam com maior incidência este grupo etário”(Artigo 9º), o sentido é ambíguo pois na alínea d) do artigo 8º explicita que uma das políticas públicas de proteção e saúde da pessoa idosa é “Aumentar a capacidade das respostas sociais dirigidas à população idosa e alargar o apoio do Estado aos utentes de forma a beneficiarem do setor privado sempre que a rede pública ou social não dê resposta”. O mesmo para a Proteção Social, “Os serviços de ação social podem ser serviços e equipamentos sociais públicos, de âmbito nacional e autárquico, ou serviços de Instituições Particulares de Solidariedade Social ou entidades equiparadas e ainda, subsidiariamente, de outras entidades privadas, incentivadas e apoiadas pelo Estado.” (Artigo 15º). E, ainda, “O Estado apoia a criação e comparticipa respostas sociais que privilegiem a autonomia da pessoa idosa e o papel dos cuidadores informais, bem como cuidados de apoio domiciliário. (Artigo 16º). Portanto, o Estado apoia a criação e financia mas não cria.

Quanto ao direito à habitação (Artigo 22ª), as afirmações são genéricas, e à mobilidade (Artigo 23º), limita-se aos transportes adaptados e acessíveis, sem um compromisso de gratuitidade dos transportes públicos que alargue ao país o que já existe a nível de alguns concelhos.

No que toca a garantir a participação plena na vida social, económica, cultural e cívica da pessoa idosa, é valorizado a educação ao longo da vida (Artigo 18º), a inovação tecnológica e o empreendorismo sénior na promoção de um envelhecimento saudável e produtivo. Esta ideia não é desenvolvida, ao contrário do voluntariado sénior (Artigo 20º), que tem algum destaque. Demasiado produtivismo e participação “ao serviço de indivíduos, famílias e comunidade, em regime de voluntariado” (Artigo 20º) em detrimento de formas de empoderamento da população idosa promovendo e apoiando o associativismo sénior, a participação em conselhos municipais e outros mecanismos de participação no debate e decisão de políticas que lhes dizem respeito.

Esta proposta de Estatuto da Pessoa Idosa não sistematiza os direitos da pessoa idosa que estão dispersos na legislação, só promove alguns direitos e não terá efeitos práticos no exercício desses direitos, nomeadamente no direito à saúde e proteção social e o direito aos cuidados paliativos (Artigo 13º), se não houver a criação de uma Rede de Equipamentos e Serviços de Apoio, com apoio domiciliário, centros de dia, centro de convívio e estruturas residenciais, que deem corpo a um verdadeiro Serviço Nacional de Cuidados, assim como o reforço do investimento público no Serviço Nacional de Saúde, em equipamentos, instalações e em profissionais para constituir as equipas intra-hospitalares e as equipas comunitárias em número suficiente dando cumprimento à Lei de Bases dos Cuidados Paliativos, como defende o Bloco de Esquerda que, recentemente, apresentou dois projetos de resolução na Assembleia da República neste sentido.

 

Publicado no ESQUERDA.NET Opinião, 24 de Outubro 2024

 

* Berta Alves, Professora aposentada, ativista do Grupo+60 do Bloco de Esquerda