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Pensões de reforma – direito social ou ameaça à coesão intergeracional e social?

 
                                                             
 
 
Têm sido trazidos para o debate público argumentos com contornos mais violentos que pretendem criar a percepção (afinal de contas estamos no tempo da vitória das percepções sobre as realidades sociais) de que as e os reformados e aposentados são favorecidos pelo governo e reponsáveis por uma rutura da coesão intergeracional e até social.
 
 

O direito à reforma e a uma pensão por velhice como direito universal e público é regularmente posto em causa com a ideia recorrente da insustentabilidade financeira da segurança social pública, sendo o argumento mais comum que esta insustentabilidade é uma inevitabilidade por um convergência de fatores em que se destaca a conjugação de dois desses fatores - o envelhecimento rápido da população portuguesa aliado às transformções do mercado de trabalho (automatização, robotização, plataformas, trabalho remoto, precariedade dos contratos de trabalho, etc).

No que toca a este argumento, mesmo quando os relatórios oficiais mostram que a Segurança Social tem tido saldos positivos na última década, que o sistema previdencial tem excedentes orçamentais anuais, que em 2023 o valor das contribuições e quotizações utrapassou largamente a despesa com pensões e outras prestações sociais substitutivas do rendimento de trabalho e que o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social, no final de 2023, tinha um valor equivalente a 11,3 % do PIB e a 21 meses de despesa com pensões do sistema contributivo1, os cenários valorizados pela direita neoliberal e os seus arautos, são sempre os mais pessimistas, os da catástrofe eminente, cujo horizonte tem sido sucessivamente adiado, já era para ser em 2010-2015, depois em 2020 e em 20272, e agora o relatório do Orçamento de Estado 2025 adotou as projeções para os próximos 50 anos que indicam que o sistema poderá entrarar em modo deficitário em 2040.

A intenção política desta narrativa é clara, provocar medo e insegurança na população, provocar o descrédito no sistema previdencial público, levando a crer que não há futuro para o sistema da Segurança Social público na sua forma atual e que para as e os trabalhadores no ativo e para as e os jovens só lhes resta enveredar pelos regimes complementares de pensões de capitalização privada sejam os planos individuais ou sejam os planos profissionais de reforma, visão partilhada nas propostas defendidas no Livro Verde para a Sustentabilidade do Sistema Previdencial3 para melhor adequação das pensões, dizem eles.

Mas este discurso não tem sido suficiente para convencer os e as trabalhadoras em Portugal de abraçar em grande número e voluntariamente os planos de reforma de capitalização privada.

Assim, têm sido trazidos para o debate público outros argumentos com contornos mais violentos que pretendem criar a percepção (afinal de contas estamos no tempo da vitória das percepções sobre as realidades sociais) de que as e os reformados e aposentados são favorecidos socialmente pelos dois últimos governos e reponsáveis por uma rutura da coesão intergeracional e até social, como se houvesse um regresso aos tempos da Troika e ao passismo, cavando a divisão e a antimonia de interesses que oporiam as e os atuais pensionistas e trabalhadores no ativo e, por outro lado, oporiam a população idosa e a população jovem. Vejamos dois exemplos recentes. Num artigo intitulado "Pensionista — a profissão mais atraente de Portugal" 4, o autor afirma que os pensionistas são mais de um terço da população do país, cerca de 3,5 milhões de pessoas, e que as atualizações de pensões levadas a cabo pelo atual governo PSD/CDS seria uma forma de conquistar o seu voto. Mas para além desta visão eleitoralista de “compra de votos”, o autor considera escandaloso as atualizações das pensões que houve desde 2022 e as que estão previstas para 2025, falando em favoritismo e que não há nenhum trabalhador no ativo que tenha tido estes aumentos.

É claro que isto é uma mistificação da realidade, ao lançar percentagens de atualizações (entre 6% e 5% em 2024, entre 2,6% e 1, 85% em 2025 pelos critérios da lei em vigor, mais um aumento suplementar aprovado na AR de 1,25% para pensões até 1568€ ) e bónus recebidos ou a receber possivelmente em 2025, sem referir que essas atualizações não só não compensaram as baixas pensões existentes em Portugal, devido aos baixos salários e às várias leis penalizadoras da formação das pensões, como também têm estado sempre abaixo da inflação real. Invisibiliza-se a perda contínua do poder de compra das e dos pensionistas desde 2011, com o congelamento das pensões entre 2011 e 2014, pagamento de uma contribuição extraordinária de solidariedade entre 2011-2016 e outros obstáculos que foram sendo criados. Invisibiliza-se, também, que, em 2024, aproximadamente 70% dos pensionistas de velhice recebem pensões até 1 000 euros e destes a maioria recebe pensões que não ultrapassam os 600 euros5. Considerando só as pensões de velhice da Segurança Social, dados do INE para 2022, indicavam que a pensão média estava abaixo do limiar da pobreza desse ano (506,7 €) e que 1 milhão e 350 mil pensionistas (de velhice, invalidez e sobrevivência) recebiam pensões até 444€ 6. Há um risco de pobreza muito alto neste grupo social, mais acentuado para as mulheres, e que no ano de 2023 voltou a subir de 17,1%, em 2022, para 21,1%.

Não há favoritismo nenhum. As atualizações das pensões durante os governos Costa e Montenegro não repõem sequer o poder de compra referente ao ano de 2011.

E já agora, é preciso lembrar que ser pensionista não é uma profissão, o reconhecimento do direito à reforma dos trabalhadores, como outros direitos sociais, foi resultado das lutas do movimento operário, com origem nos finais do século XIX que, nos países industrializados, a par da luta por melhores condições de trabalho conseguiram obter medidas de proteção contra os riscos sociais, entre eles os primeiros sistemas de reforma.

É pois, de toda a justiça que o Bloco de Esquerda (e o Grupo +60 no seu caderno reivindicativo) defenda a atualização extraordinária das pensões de reforma, como foi proposto para o Orçamento de Estado de 20257.

Um segundo exemplo, é a posição que foi tomada pela Associação Portuguesa de Contribuintes (APC), que alberga “individualidades” da área do PSD, CDS e IL, que considera um erro o aumento extra das pensões aprovado na Assembleia da República, porque segundo eles penaliza os mais jovens e rompe com o contrato social de solidariedade entre gerações.8

Mais uma mistificação, é claro. O sistema português de Segurança Social, na sua componente previdencial donde sai o pagamento das pensões de velhice, foi construído segundo o modelo de repartição, é financiado em grande parte por quotizações dos trabalhadores e das entidades empregadoras. “Este sistema obriga, por isso, a uma solidariedade intergeracional (as pensões são financiadas pelas contribuições dos ativos) e intrageracional (os ativos financiam as prestações dos que estão impossibilitados de trabalhar)”9. Logo não há nenhuma quebra de solidariedade intergeracional, as e os reformados de hoje contribuiram durante décadas, no geral pelo menos 40 anos, para o pagamento das pensões dos trabalhadores das gerações anteriores que deixavam de estar no ativo .

O que é necessário é fortalecer o sistema público e universal e o seu financiamento, assim como defender o trabalho com direitos das e dos mais jovens, e não sabotá-lo com soluções de mercado e com a redução da “Taxa Contributiva Gobal” das empresas (TSU).

Lembram-se quando o governo Passos Coelho quis baixar a TSU dos empregadores, aumentando a parte das contribuições dos trabalhadores, em 2012 ? A resposta negativa dos trabalhadores foi esmagadora.

É preciso de novo uma grande mobilização popular e intergeracional contra as reformas rivatizadoras que a direita pretende fazer no sistema previdencial português.

 

Berta Alves

Professora aposentada, ativista do Grupo+60 do Bloco de Esquerda

 

1 Maria Clara Murteira, “«Livro Verde»: uma agenda neoliberal para as pensões”, Le Monde Diplomatique, edição Portuguesa Dezembro 2024. 2 Idem. 3 Livro Verde para a Sustentabilidade do Sistema Previdencial (Outubro 2024) da Comissão para a Sustentabiidade da Segurança Social, Edição: Gabinete de Estratégia e Planeamento (GEP) Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS). 4 João Carlos Tavres, "Pensionista — a profissão mais atraente de Portugal", em Jornal Público, 04/12/2024. 5 Em Nota Justificativa na Proposta de Aditamento PROPOSTA DE LEI N.º 26/XVI/1ª ORÇAMENTO DO ESTADO PARA 2025 do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda. 6 Eugénio Rosa, https://www.eugeniorosa.com/articles/download/488 , 09/06/2024 7 Proposta de Aditamento PROPOSTA DE LEI N.º 26/XVI/1ª ORÇAMENTO DO ESTADO PARA 2025 do grupo parlamentar do Bloco de Esquerda, em que foi proposto que “a partir de 1 de janeiro de 2025, o Governo procede a um aumento extraordinário das pensões, no valor mínimo de 50,00€ (cinquenta euros), por pensionista, deduzido o valor da atualização regular anual”. 8 Alexandra Machado, «Associação de Contribuintes considera "um erro" atualização extraordinária de pensões por penalizar "os mais jovens" », em jornal Observador, 06/12/2024. 9 F. Louçã, J. L. Abuquerque, V. Junqueira e J. .R. de Ameida (coord. de) (2016), Segurança Social. Defender a Democracia, Bertrand Editora, pp.54-55.

 

Publicado no ESQUERDA.NET   , 01 de janeiro